Crônica, Filosofando, Infância

Terror noturno

Um gato preto me espreita na porta do apartamento. Eu consigo ver ele de longe. Ele está olhando fixamente para mim. Estou assustada, ele é amedrontador. Estou deitada na minha cama, com a porta do meu quarto aberta, que dá visão a porta de entrada do apartamento. O gato continua imóvel a me fitar ao longe. Tudo parece muito real, afinal estou vendo minha casa exatamente como ela é. Acordo. Abro meus olhos e estou olhando exatamente para o mesmo lugar do meu sonho. O gato sumiu, mas o cenário é o mesmo. Eu não consigo me mexer. O gato não está mais ali, mas meu medo e meu pavor ainda estão. Meu corpo continua dormindo, minha consciência está desperta, mas não consigo me mover. Tento virar minha cabeça para ter outra visão que não seja a porta, mas não consigo. Só consigo abrir e fechar meus olhos. Quero chamar alguém, mas o som não sai. O tempo passa nessa tensão. 

Essa é a minha primeira lembrança de uma paralisia do sono, que aconteceu em meados dos anos 90. Desde então tive incontáveis episódios como esses. Cada vez que acontece é um terror diferente, mas sempre sonhando com algo acontecendo no local exatamente igual onde estou ao acordar. Mesmo panorama, mesmo ângulo, mesma iluminação. Não consigo precisar quanto tempo dura. Mas para quem está passando por isso, é tempo demais.

O que é a paralisia do sono

Paralisia do sono é um tipo de distúrbio do sono em que a pessoa, apesar de estar com a mente ativa e consciente, não consegue movimentar seu corpo, falar ou se movimentar. Esses episódios acontecem quando a mente está despertando ou pegando no sono. No meu caso é sempre quando estou pegando no sono. Além da dificuldade de movimentar o corpo, a paralisia do sono pode envolver episódios de alucinação, onde se vê coisas que não estão ali ou se sente que está sendo observado. 

Ainda podem ser ouvidos barulhos estranhos ou ocorrer experiências sensoriais diversas, como a sensação de estar flutuando e de estar vendo fora do próprio corpo. 

Como eu consegui controlar

Enfrentei a paralisia do sono tempos atras. Hoje eu consigo identificar o dia que eu vou ter, porque a minha consciência me alerta. É como se eu estivesse entrando numa outra dimensão. Quando estou pegando no sono, escuto um som diferente, que realmente não consigo reproduzir em palavras, mas eu sei que é o gatilho para entrar num pesadelo terrível. Eu fico com muito medo porque sei o que vem a seguir. Daí eu fico tentando acordar, para não ter que viver esse pesadelo que eu sei ser os mais terríveis, esses que acontecem na vigília, ou seja, no início do sono. Eu entro no pesadelo e minha fuga dele faz minha consciência acordar, mas meu corpo não. Mas nesse dia, não tive medo. Fiquei tranquila e pensei, só mais um pesadelo, não vou lutar contra ele. É melhor um pesadelo que uma paralisia. E não aconteceu nada. Tive um pesadelo normal, o que é comum para mim, e não tive paralisia. Uma vitória. Não sinto mais medo de ter paralisia, e, acredito que por isso, nunca mais tive. O último episódio foi há mais de um ano. 

Além da paralisia, tenho pesadelos homéricos quase diariamente. Esses não consigo controlar, me acostumei com eles e já faz algum tempo que tenho feito um diário dos meus pesadelos. Meus sonhos são, em sua maioria, que estou perdida. Seja em um hotel, seja em um shopping, em uma cidade grande dentro ou fora do meu país, numa língua que eu não falo ou dentro de uma mansão gigantesca. Também tenho um sonho recorrente com água, que estou prestes a me afogar no mar, no rio ou em uma enchente.

Eu faço terapia a muitos anos, mas nunca consegui controlar minha mente a ponto de controlar meus sonhos. Faz pouco tempo que comecei um tratamento psiquiátrico onde meu médico me disse que a medicação poderia resolver até meus pesadelos, mas isso também não aconteceu, estou em tratamento há mais de seis meses e meus pesadelos ainda continuam acontecendo diariamente.  

O lado bom disso tudo é que todos os dias acordo com a sensação de estar em mundos completamente diferentes, ter falado com pessoas que nunca vi na vida e de ter construído cenários e histórias fantásticas todos os dias. 

Motivos elencados para ter esses episódios

Sou aficionada por histórias, contos e filmes de terror. Eu sinto um arrepio passando por cada sentimento do meu corpo. Me sinto viva e me sinto excitada. Em contos e histórias meu cérebro vibra de tanta imagem passando na minha cabeça tentando reconstruir cada cena que estou ouvindo. Imagino tudo acontecendo, ao mesmo tempo que imagino, tento reconstruir as sensações de calor, luz e aromas que envolvem cada um daqueles acontecimentos. Um filme vai sendo produzido pela minha imaginação ao ouvir a narração de histórias assustadoras.

Mas o preço é alto. Paralisia do sono é apenas um dos episódios que atribuo a essa minha paixão por histórias de terror. Quando me vejo em casa sem mais ninguém ou planejo passar um final de semana sozinha em algum lugar, é como se os personagens de todas as histórias e de todos os filmes fossem passar esse tempo comigo. Meu cérebro começa a procurar em cantos e frestas rostos já conhecidos por mim, de todos os personagens que criei e daqueles que foram criados por alguém, como a menina do exorcista, a Emile Rose e outros personagens do cinema. 

Já parei de ver filmes e séries de terror há muitos anos, mas ainda não resisto a histórias de minha madrinha, por exemplo, dos três fantasmas que vivem no interior de Taquara Verde e guardam o tumulo de um inglês, que viveu naquela região, e que deixou várias panelas de ouro enterradas. A menina com cachorrinho que foi fotografada nessas terras e que detém o local exato das panelas de ouro, mas que ninguém até hoje conseguiu se comunicar com ela, por medo, já que ela está morta. Isso não é irresistível para você? Pois para mim é. Hoje me permito apenas escutar histórias “verídicas” de contos de pessoas comuns, que passaram por isso ou que sabem de alguém que passou.

Hoje percebo que eu consigo controlar a paralisia, mas ainda não consegui controlar minha mente tanto acordada ou em meus pesadelos. Pareço muito corajosa e destemida falando sobre isso abertamente, mas não sou. O título que escolhi para começar a escrever esse texto foi: “uma versão de mim que não curto”.  

O princípio do meu pensamento, que me gera os medos é: “Se eu sei que eles existem, eles também sabem que eu existo”. A partir do momento que eu tomo consciência das histórias e lendas urbanas de fantasmas, eles também tomam consciência de que eu existo e que posso ser uma fonte de comunicação deles do mundo espiritual com o mundo real. Mas eu tenho muito medo disso. 

Preciso entender de onde vem esse medo e essa obsessão por isso. Quem sabe assim eu possa controlar um pouco minha mente para ter uma vida onde eu possa alugar uma cabana no meio da floresta (meu lugar preferido no mundo) e possa ir sozinha, sem ter que levar ninguém para me proteger dos fantasmas que viriam me assombrar.

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Cotidiano, Crônica

Sinal

Eram 8h da manhã e eu levantei da cama para um dia cheio de trabalho, o único da semana que trabalho os dois turnos. Vesti-me em menos de 15 min, tempo suficiente para eu por meu guarda-roupa abaixo e provar pelo menos meia dúzia de roupas. Com saia longa, rasteira e grandes brincos, estava pronta. Café rápido, passadinha no banheiro, beijo no João e tchau. Já estava atrasada, como sempre.

Entrei no carro, liguei o som e bora, rumo a Balneário Camboriú onde fica o jornal. Com Ana Carolina & Seu Jorge no som, nem ligo quando a sinaleira fecha bem na minha vez de passar. Quando morava em Blumenau achava que isso era azar. Neste dia eu tive certeza. Sinaleira aberta e lá vamos nós, né? Acho que não. Meu carro não liga. Tento virar a chave três vezes e nada. Me dou conta que estou andando na reserva há três dias. Pronto, estava sem gasolina na Avenida do Estado e era a primeira numa fila a perder de vista.

Fiquei dentro do carro por alguns instantes sem saber o que fazer. Já buzinavam atrás de mim quando resolvi sair do carro. Sem pensar direito no que faria fora dele, eu olhei para a fila e abri os braços como quem diz: Não sei o que fazer. Volto pra dentro do carro e fecho a porta. Pensa, pensa, pensa. Um homem atravessando a rua. Bingo. Ligo o pisca alerta e saio para pedir ajuda. Como era difícil colocar a cara para fora. Peço envergonhada. Ele se recusa, desavergonhado. Quero me jogar no primeiro buraco. Não havendo buracos, preciso de outra solução.

Loja de material elétrico à direita, lugar perfeito para achar um homem para me ajudar com o carro. Abordo o primeiro barbudo que vejo e pronto, achei um homem feliz em ajudar uma mulher com o carro sem gasolina no meio da avenida. Ofereço ajuda para empurrar. Ele ri, diz para eu relaxar e ficar dentro do carro. Dez minutos e 100 metros adiante, meu carro estava estacionado. Ufa, resolvido. Agradeço e lhe entrego uma nota de R$ 5 quando na verdade eu teria pagado R$ 100 para sair daquela situação. Ele me olha com espanto e alegria e diz:

– Você tinha um problema e eu tenho outro. E a gente se ajuda. Muito obrigada! – e contente ele se despediu.

Apesar da situação toda, aquelas últimas palavras me deixaram com um sorriso estampado. E cantando Ana Carolina & Seu Jorge, fui andando comprar dois litros de gasolina. 

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Crônica, Infância, Pessoal

Eu?!

Vivi até hoje tentando incansavelmente descobrir quem eu sou. Sei que já fui muita coisa. Menininha atrevida que jogava futebol com os meninos. Que subia nas árvores sem medo e ainda construía casas lá em cima. Que descia morros escorregando em um papelão e que morria de medo das historias contadas no rádio da casa de minha madrinha, no sítio, onde não existia luz elétrica e se relatavam lendas terríveis de demônios e almas penadas. Fui embora de casa com seis anos, mas dobrar a esquina parecia perigoso demais e resolvi voltar. Meu primeiro beijo foi em troca de uma volta de bicicleta, quando eu tinha 11 anos.

Já fui uma menina rebelde que gazeava aula. Que jogava a mochila pela janela da escola e a pegava lá fora, depois de passar abaixada pela diretoria. Fazia isso só para andar a cavalo, ou jogar sinuca ou bater papo e fumar cigarro a manha toda. Já sai da sala depois de jogar a carteira no chão brava com meu professor de matemática, que depois me deixou em segunda época. Já fumei cigarro na escola. E beijei também. E briguei. E dancei, numa coreografia linda. E já quase fui expulsa por estar com a galera que colocava moleques no lixeiro e rodava no chão. Já desmanchei macumba e já fiz simpatia de amor. Já fui à cartomante, vidente, taróloga e já brinquei da brincadeira do copo, e da caneta e do compasso. Já roubei o carro do meu pai e já sai de casa escondida no meio da madrugada para ver um grande amor. Já chorei por amor. Já fui muita amada. Tive muitos amigos que amava tanto que acabei beijando, e descobri tarde demais que isso comprometeria muita a amizade. Já cheguei muitas vezes de madrugada em casa e tinha que abrir a porta só quando passasse um caminhão, para que o cachorro não ouvisse a porta abrir e latisse para acordar meus pais.

Já tirei foto dentro de um caixão, com velas acessas e um amigo meu velando do lado. Já avacalhei na brincadeira do soldadinho, onde a punição era ser jogada no açude, mas fui livrada por um cara que me amava e por minha irmã que ainda me ama. Já comecei a escrever um livro. Já escrevi muitas poesias. Já pensai em ser tudo quanto é coisa. Advogada, fisioterapeuta, publicitária, administradora de empresas, psicóloga, mas jornalismo me acompanha desde meus 10 anos e foi à escolha. Já fiz uma fogueira num morro bem alto e passei a noite inteira fazendo juras de amor e bebendo vinho. Já namorei escondido e nosso encontro era sempre em um cemitério perto de minha casa. Fazia mais de 12 km por dia de bicicleta para ver meu primeiro amor. Já montei três quebra-cabeças de 1000 peças e um de 2000 mil. Já li centenas de livros e quero reler mais da metade, mas nunca consigo fazer isso.

Já dei risada até fazer xixi na calça muitas vezes, porque minhas irmãs adoravam me fazer cócegas porque sabiam que eu não conseguiria segurar. Já fiz todos os tipos que regimes possíveis. Já perdi peso por uma paixão. Já engordei muito sofrendo por amor. Já passei quase um dia a base de água. E no outro a base de frutas e no terceiro fui ao Mc porque não agüentava mais me privar de nada. Já desfilei num concurso da mais bonita da escola, mas não me classifiquei, mas é claro que tinha treta :P, já fiz um curso de manequim, modelo e etiqueta. Já fui contadora de histórias para crianças carentes. Já fui atriz, e encenei uma peça onde só eu tinha fala. Já fui hippie e já fui metalera. Uso muito calçado baixo e adoro saias rodadas. Adoro brincos e colares indianos. Brigo com meus cabelos quase todos os dias. Sempre acho que preciso emagrecer, mas geralmente gosto muito de meu reflexo no espelho.

Amo minhas irmãs e meu filho mais que tudo no mundo. Mas às vezes acho que não demonstro muito isso. Aprendi a respeitar e amar meus pais só depois que virei mãe. Adoro o sol, o luar, o cheiro de grama cortada, a casa cheia, o meu carro limpo, sushi, beijo, unhas vermelhas, mini saias, óculos escuros, mergulhar no mar, ver o João dormir, um cafuné, declaração de amor, dar gargalhada. Entre muitas e muitas coisas. E coisas que eu ainda nem sei se eu gosto, mas que um dia saberei e isto tbm fará parte do meu eu.

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Crônica, Pessoal

Quase sozinha

Sempre vive num mundo onde simplesmente podia confiar completamente em alguém. Podia contar qualquer coisa, essas pessoas me entendiam. Tudo que dava vontade de fazer, fazíamos juntas, porque tínhamos as mesmas vontades. Nunca tive problemas em ter que guardar um segredo de alguma amiga, podia confiar, contar tudo, jamais a história se espalharia. Porque minha vontade incontrolável de comentar com alguém tal segredo, poderia perfeitamente ser saciado contado para essas pessoas. Com certeza, não sairia dali.

Eram praticamente extensões de meu ser. Coisas que não conseguia compreender em mim, poderia perfeitamente aprender com as atitudes dessas pessoas. Passávamos horas a conversar, escutar música, ler, discutir e até brigar que aquela relação não se desfazia nunca. Unidas contra o mundo inteiro, e a favor da proteção e da felicidade, caminhávamos juntas, os mesmos passos, as mesmas vozes, os mesmos medos e anseios.

Eu era completa. Tudo que me faltava, com certeza achava nelas. Se me faltava paciência, esta transbordava na outra. Se na outra faltava agilidade, sobrava esperteza a rapidez na terceira. Se faltasse persistência, uma abria os abraços e dávamos as mãos e seguíamos, convictas de estar seguras. Unidas, eram um ser pleno.

Tínhamos uma música, tema do companheirismo e da sensação de união.

Somos um só, irmão e irmã, cara metade tudo é amizade, parte de ti, parte de mim, parte de tudo que existe. Sonhos, fantasias no azul do mar, juntos só eu e vc.

Cantamos até o som se calar. Brincamos, até nos cansarmos. Rimos, até doer a bochecha. Discutimos, até ficarmos sem mais argumentos. Andamos, até a encruzilhada. É, esta que nos separou. Esta que fez cada uma seguir seu próprio caminho. E lá vão elas, separadas. Não mais são plenas, tampouco incompletas. Diferentes. São diferentes de antes. Já não se entendem mais, já não se tem o mesmo sentimento de união, já não gostam das mesmas coisas, já não estão inseridas no mesmo grupo de amigos. Mas estão firmes na luta. O que elas almejam?

Serem felizes. Fazem de tudo para isso. Não mais juntas, mas aquele sentimento de trazer o mundo para bem perto delas ainda não se desfez. Sentem falta de daquela compreensão, daquele espelho, daquele reflexo. De alguma forma ainda estão super ligadas. Mas uma forma diferente.

O tempo é assim. Bom tempo que passou. Bom tempo que nos proporcionou isso. Bom o tempo que tbm nos tirou isso. E agora, aquilo que nos cerca, aquilo que depende de nós, que outrora era respondido em três, tem que ser feito com um terço. Mas este terço é forte e inteligente. Elas  ainda carregam um pouco uma da outra dentro de si, e isso as fortalece.

Essas três meninas cresceram, se chamam Ana Lúcia, Franciane e Gabriela. As três bruxas da Meia Praia….

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